26 de janeiro de 2009

Ensaio sobre a Cegueira

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Livro dos Conselhos

Esta é a citação que está na contra capa do livro Ensaio sobre a Cegueira. Escrito por José Saramago em 1995, este é um daqueles livros que levam o leitor, à reflexão, a um entendimento da situação que vai além do que está escrito. Além do que os olhos podem ver.

Spoiler: Este texto contém revelações sobre o enredo da obra: Ensaio sobre a Cegueira.

História
A história conta sobre um vírus que afeta as pessoas, deixando-as cegas. Curiosamente, esta não é uma cegueira como as outras, onde os cegos encontram-se mergulhados num mar de escuridão. Nesta cegueira, como descreve o autor, é como se a pessoa estivesse diante de uma luz que nunca se apaga. Tudo é assustadoramente branco.

Logo nas primeiras páginas, um homem dentro de um carro parado no semáforo, cega. Este vem a ser conhecido como o primeiro cego e o que encontramos a seguir é uma característica marcante da história: detalhes sobre os mais diversos comportamentos humanos diante de tal situação. Imediatamente algumas pessoas se irritam e outras se preocupam. Ao descobrirem sobre o estado do pobre homem, alguns se compadecem e um dos cidadãos se oferece para levar o mais novo cego em casa. Guiado pelo cego, por mais estranho que isso possa parecer, o homem consegue chegar ao apartamento do mesmo e lá o deixa. Ele fica bastante perdido na própria casa, onde deixa um vaso de flores cair no chão, ao tateá-lo. Ao chegar, sua esposa dá conta da sua situação e rapidamente agenda uma ida a um oftalmologista para alguns minutos depois. Neste ponto, o leitor se depara com três situações comuns do ser humano. A primeira é que, estando desesperado pela sua situação, o cego esquece de pedir as chaves do carro para aquele que vem a ser conhecido como o ladrão. A segunda é que, mesmo com esta falha do marido, que lhes custou o carro, a mulher do primeiro cego contém a sua raiva e continua apoiando-o. A terceira mostra como algumas pessoas se aproveitam da situação de outrem, para tirar vantagem delas, como fez o ladrão.

É nesta toada que a história é apresentada. Com o tempo vamos conhecendo personagens cujos destinos se unem por serem pacientes do mesmo médico que atendeu o primeiro cego e por este contato, acabam cegando também. Temos a inocência do menino estrábico (vesgo), a força oculta da mulher do primeiro cego, juntamente com o orgulho e machismo deste. Temos a sabedoria do velho com a venda preta no olho, a beleza, sensualidade e ternura da garota dos óculos escuros, a consciência e senso de coletividade do médico e, por último, mas aquela que poderia ter sido a primeira a ser citada, a mulher do médico, com seu profundo senso de responsabilidade e de compaixão para com os outros.

Na história, todas as pessoas que vão cegando, são isoladas pelo Governo para evitar que a contaminação continue (ato que se mostra inútil com o desenrolar da trama). Os personagens citados, além de terem ligação com o médico e ficarem cegos, são enviados para o mesmo lugar, um manicômio abandonado. A mulher do médico difere dos demais por não estar cega. Misteriosamente a doença não causa efeito sobre ela, mas esta opta por mentir sobre a sua condição para acompanhar o marido.  Lá, eles presenciam o desmoronar da dignidade humana. Começando pelo Governo, que os abandona (apesar de ter-lhes prometido apoio), passando pela falta de consciência de algumas pessoas no que tange a higiene pessoal e coletiva, culminando com a instauração, à força, de um poder autoritário, injusto e desumano.

Passado algum tempo, uma revolta popular contra os cegos opressores, acaba por incendiar o manicômio e na tentativa de escapar do incêndio, os cegos descobrem que o exército, que estava cuidando para que nenhuma pessoa fugisse daquele lugar, já não estava mais lá e por isso, aquelas pessoas que conseguem, saem dali, indo procurar outro lugar para viver. O grupo de cegos, liderado pela mulher do médico inicia então uma jornada pela cidade, onde se descobre que todos os cidadãos contraíram a "cegueira branca" e que nada mais era como antes. As ruas estavam imundas, por lixo e fezes. Não havia mais energia elétrica e nem água corrente. As pessoas haviam se tornado nômades: andavam em grupos e estes grupos viviam à procura de comida e água para sobreviverem.

No meio desse caos, a mulher do médico guia os outros cegos à sua casa e passa a buscar comida para alimentá-los, transformando-se em uma guia, uma mãe para todos eles. Ela acaba servindo como um farol, que não deixa que os valores daquelas pessoas que a acompanham, sejam perdidos. A história fala sobrevivência, sobre princípios, sobre responsabilidade, sobre a tentativa de manter a sanidade em meio ao caos. É um livro interessantíssimo, que deixa o leitor atento até a última página, sem dar pistas sobre o final.



Inovação
Saramago inova de diversas formas. Não obstante o fato da história, por si só, ser original, há vários detalhes no livro que chamam a atenção. Nenhum personagem ou lugar tem nome. Para mim, isto reforça a tese de que poderia ser qualquer um naquela história; qualquer um em qualquer lugar. Os capítulos também não possuem numeração ou nome. Felizmente eu tenho o hábito de ler capítulos completos e não de interromper a leitura em capítulos inacabados. Assim, não fiquei perdido durante a leitura (mesmo sem usar marcador de páginas).

O estilo de escrita de Saramago é igualmente único: ele não usa travessões nos diálogos. Todas as falas são diluídas no próprio texto, separadas por vírgulas e com a primeira letra de cada nova fala em maiúscula. Ao mesmo tempo que isto dá mais dinamismo ao texto, torna-o um pouco confuso para leitores desatentos, pois ao menor descuido, pode-se deixar de saber qual a sequência do diálogo. Além disso, este estilo prega peças até nos leitores mais atentos, pois em determinado momento não se sabe se o que se passou foi uma fala ou pensamento da personagem ou mesmo se foi o Narrador. Por isso, por várias vezes eu me vi perdido no meio do parágrafo, sendo obrigado a voltar ao seu início e reler todo ele, para restabelecer o entendimento.

Para completar, a pedidos do autor, o livro não foi traduzido para o Português do Brasil, sendo o Português de Portugal, a linguagem corrente no texto. Ao contrário do que se possa imaginar, isto não compromete muito a leitura. São apenas algumas palavras diferentes, como casa de banho e pequeno almoço em vez de banheiro e café da manhã. Além disso, há algumas construções e palavras às quais não estamos acostumados, que dificultam um pouco a compreensão, mas com a leitura é fácil se habituar, principalmente levando em consideração que algumas regras do Acordo Ortográfico de 1990, por serem provenientes do Português de Portugal, já estão presentes no livro, como ideia sem acento e a ausência do trema em palavras como sequela.

Reflexão
O livro nos leva a refletir de várias maneiras. A primeira reflexão tem a ver com acontecimentos descritos durante toda a trama. Ela nos faz pensar em como nossa sociedade está embasada na visão. Apesar de termos 5 sentidos (alguns ainda creem que temos 6), sem a visão, tudo desmorona. Perde-se a razão de várias maneiras. As pessoas já não dão importância à higiene e sentimentos como o amor e a gratidão são esquecidos, tornando as pessoas mais primitivas.

A segunda reflexão é sobre como a sociedade, por meio do seu Governo, descarta aqueles que são diferentes, deixando-os entregues à própria sorte. Da mesma forma que os primeiros cegos foram colocados em um manicômio abandonado sem grandes ajudas, quantas pessoas se veem em situação semelhante nas periferias do mundo? Quantas pessoas com potencial, aguardam uma chance para crescerem na vida, para mostrar o seu valor à sociedade? E quantas pessoas como estas se veem como os cegos no asilo, sem esperança, sem apoio? Isso nos faz pensar na sociedade injusta em que vivemos que trata aqueles que não se encaixam nos seu padrões ditos normais, com desprezo e violência.

A terceira reflexão é sobre caráter. Da mesma forma que os cegos da primeira camarata do lado esquerdo eram organizados e buscavam o bem comum a todas as pessoas confinadas no manicômio, sempre preocupados com a higiene e alimentação de todos os internos, havia aqueles que não se importavam em viver em um lugar sem higiene, propício ao aparecimento de várias doenças decorrentes da precariedade da limpeza. Pior que estes, haviam aqueles que tomaram à força o controle da distribuição dos alimentos dentro do manicômio, requerendo primeiramente bens materiais para distribuir a comida, que deveria ser entregue gratuitamente e, em seguida, exigindo que as mulheres de cada camarata fossem ter com eles, cada grupo no seu devido dia. Lá, as mulheres eram violentadas e humilhadas, mas o faziam para ter o que comer. Isso leva a pensar em como nós agimos em momentos de crise: somos organizados, desorganizados ou aproveitamos do momento para espalhar o pânico e ganhar algo com isso? Será que se estivéssemos na mesma situação dos cegos, que tiveram seus direitos e suas mulheres violadas, agiríamos passivamente ou, como eles, aguentaríamos um tempo para nos revoltarmos quando a situação fosse insustentável? Ou então, será que teríamos coragem de nos opor à tirania e à opressão de um governo auto intitulado e nos organizaríamos contra eles logo de início?

A quarta reflexão é sobre responsabilidade. A mulher do médico foi a única pessoa que não ficou cega e encarou isso como um chamado de responsabilidade. Foi ela que guiou, alimentou e cuidou da higiene dos cegos que faziam parte do seu grupo. Foi grande em presenciar a traição do seu marido com a garota dos óculos escuros e ainda assim entender a situação e perdoar a ambos. Isso me fez pensar nas vezes em que temos olhos quando ninguém mais os tem, quando enxergamos o que ninguém mais viu, em outras palavras, quando sabemos de algo que ninguém mais sabe e, por comodismo, preguiça, falta de confiança ou egoísmo, não nos manifestamos, omitindo nossas opiniões e deixando passar uma situação em que poderíamos ter feito a diferença.

A última reflexão que me ocorreu foi sobre a própria cegueira. Assim como os personagens, eu também pensei o que seria se eu ficasse cego; se, no próximo piscar de olhos, a visão me faltasse. A resposta para o meu caso específico, eu não sei dizer, mas o livro deixa uma pista. O ser humano tem a habilidade de se adaptar às mais diversas situações. Se estão todos cegos, eles se organizam em grupos e tentam viver um dia de cada vez, sempre em busca de comida e água, sem os quais não há vida. Talvez comigo seja igual, talvez não. O certo é que eu não quero descobrir.

Contras
Só encontrei um detalhe sobre o qual me queixar. Durante a narrativa, o autor, por vezes, abandona o diálogo ou as descrições, para filosofar sobre o assunto corrente. Isto, em algumas vezes, torna a leitura difícil e entediante, pois estas incursões do autor costumam tomar quase um página. Não é algo que tire a beleza do livro, pelo contrário. Algumas vezes estes discursos do Narrador levam o leitor a uma análise diferente da situação, levando-o a pensar. Mas, como observado, algumas vezes isto torna a leitura entediante, tirando aquele gostinho de um livro perfeito.

Conclusão
Depois do exposto, fica fácil prever quais serão as últimas palavras deste texto. O livro é fantástico e eu considero difícil lê-lo sem fazer qualquer reflexão ou traçar qualquer analogia com passagens de sua própria vida. É um daqueles livros que mudam o nosso ponto de vista sobre determinadas coisas, que vem mostrar que alguns detalhes, como os nomes, muitas vezes não são importantes, que vem nos alertar sobre estarmos cegos sem sabermos. Ainda não vi o filme, mas só pela história do livro, já penso que terei boas impressões dele, sem contar que é dirigido por um brasileiro (Fernando Meirelles) e possui a bela Alice Braga (garota dos óculos escuros) no elenco. De qualquer maneira, a minha sugestão é para que se leia o livro antes de assistir o filme, pois a experiência da história costuma ser muito melhor aproveitada assim.

Ensaio sobre a Cegueira 4 Stars




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2 comentários:

  1. Brilhante comentário.
    Cuidado, tal como a "cegueira branca", Saramago é contagioso.
    Se não ficaste indiferente à reflexão da obra Ensaio sobre a cegueira, o que dirás então da obra O evangelho segundo Jesus Cristo?
    Após a primeira leitura deste autor fui contagiada por seu virus de reflexão do que somos em nosso mundo e, apaixonei-me pelo autor, filósofo, homem josé Saramago ao ponto de ler o máximo possível do quer ele escreve, e por saber que ainda há pessoas que carregam e expõem suas verdades e vergonhas.
    Parabéns pelo excelente artigo.
    Malu

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